Primeiras Palavras

A questão da formação docente ao lado da reflexão sobre a prática educativo-progressiva em favor da autonomia do ser dos educandos é a temática central em torno de que gira este texto.
Temática a que se incorpora a análise de saberes fundamentais àquela prática e aos quais espero que o leitor crítico acrescente alguns que me tenham escapado ou cuja importância não tenha percebido.

Devo esclarecer aos prováveis leitores e leitoras o seguinte: na medida mesma em que esta vem sendo uma temática sempre presente às minhas preocupaçes de educador, alguns dos aspectos aqui discutidos não têm sido estranhos a análises feitas em livros meus anteriores.
Não creio, porém, que a retomada de problemas entre um livro e outro e no corpo de um mesmo livro enfade o leitor.

Sobretudo quando a retomada do tema não é pura repetiço do que já foi dito. No meu caso pessoal retomar um assunto ou tema tem que ver principalmente com a marca oral de minha escrita.
Mas tem que ver também com a relevância que o tema de que falo e a que volto tem no conjunto de objetos a que direciono minha curiosidade.
Tem que ver também com a relaço que certa matéria tem com outras que vêm emergindo no desenvolvimento de minha reflexão.
É neste sentido, por exemplo, que me aproximo de novo da questão da inconclusão do ser humano, de sua inserço num permanente movimento de procura, que rediscuto a curiosidade ingênua e a crítica, virando
epistemológica.
É nesse sentido que reinsisto em que formar é muito mais do que puramente treinar
o educando no desempenho de destrezas e por que não dizer também da quase obstinaço com que falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos homens e às mulheres, assunto de que saio e a que volto com o gosto de quem a ele se dá pela primeira vez.
Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia.

Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo.
Daí o meu nenhum interesse de, não importa que ordem, assumir um ar de observador imparcial, objetivo, seguro, dos fatos e dos acontecimentos.

Em tempo algum pude ser um observador "acizentadamente" imparcial, o que, porém, jamais me afastou de uma posiço rigorosamente ética.
Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro.
O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-la e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele.

O meu ponto de vista é o dos "condenados da Terra", o dos excluídos. Não aceito, porém, em nome de nada, açoes terroristas, pois que delas resultam a morte de inocentes e a insegurança de seres humanos. O terrorismo nega o que venho chamando de ética universal do ser humano.
Estou com os árabes na luta por seus direitos mas não pude aceitar a malvadez do ato terrorista nas Olimpíadas de Munique.

Gostaria, por outro lado, de sublinhar a nós mesmos, professores e professoras, a nossa responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa docente.
Sublinhar esta responsabilidade igualmente àquelas e àqueles que se acham em formaço para exercê-la.
Este pequeno livro se encontra cortado ou permeado em sua totalidade pelo sentido da necessária eticidade que conota expressivamente a natureza da prática educativa, enquanto prática formadora.
Educadores e educandos não podemos, na verdade, escapar à rigorosidade ética.
Mas, é preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do lucro.
Em nível internacional começa a aparecer uma tendência em acertar os reflexos cruciais da 'nova ordem mundial', como naturais e inevitáveis.
Num encontro internacional de ONGs, um dos expositores afirmou estar ouvindo com certa freqüncia em países do Primeiro Mundo a idéia de que crianças do Terceiro Mundo, acometidas por doenças como diarréia aguda, não deveriam ser salvas,
pois tal recurso só prolongaria uma vida já destinada à miséria e ao sofrimento."* Não falo, obviamente, desta ética.
Falo, pelo contrário, da ética universal do ser humano. Da ética que condena o cinismo do discurso citado acima, que condena a exploraço da força de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B,
falsear a verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo que não cumprirá a promessa, testemunhar mentirosamente, falar mal dos outros pelo


* A fala dos Excluídos em Cadernos Cede, 38. GARCIA, Regina L., VALLA Vícotr V., 1996.


gosto de falar mal. A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo.
A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestaço discriminatória de raça, de gênero, de classe.
É por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar.
E a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relaçes com eles.
Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos, no modo como citamos autores de cuja obra discordamos ou com cuja obra concordamos.
Não podemos basear nossa crítica a um autor na leitura feita por cima de uma ou
outra de suas obras.
Pior ainda, tendo lido apenas a crítica de quem só leu a contracapa de um de
seus livros.

Posso não aceitar a concepço pedagógica deste ou daquela autora e devo inclusive expor aos alunos as razões por que me oponho a ela mas, o que não posso, na minha crítica, é mentir.
É dizer inverdades em torno deles.
O preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua retidão ética.
É uma lástima qualquer descompasso entre aquela e esta.
Formaço científica, correço ética, respeito aos outros, coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relaço ao outro nos façam acusá-lo do que não fez são obrigaçes a cujo cumprimento devemos humilde mas perseverantemente nos dedicar.

É não só interessante mas profundamente importante que os estudantes percebam as diferenças de compreensão dos Faros, as posiçes às vezes antagônicas entre professores na apreciaço dos problemas e no equacionamento de soluçes. Mas é fundamental que percebam o respeito e a lealdade com que um professor analisa e critica as posturas dos outros.

De quando em vez, ao longo deste texto, volto a este tema.
É que me acho absolutamente convencido da natureza ética da prática educativa, enquanto prática especificamente humana.
É que, por outro lado, nos achamos, ao nível do mundo e não apenas do Brasil, de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado, que me parece ser pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano.
Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opço, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos. Neste sentido, a transgressão dos princípios éticos é uma possibilidade mas não é uma virtude. Não podemos aceitá-la.

Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto á transgressão da ética.
Uma de nossas brigas na História, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos em favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico.
Mas, faz parte igualmente desta luta pela eticidade recusar, com segurança, as críticas que vêem na defesa da ética, precisamente a expressão daquele moralismo criticado. Em mim a defesa da ética jamais significou sua distorço ou negaço.

Quando, porém, falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana.
Ao fazê-lo estou advertido das possíveis críticas que, infiéis a meu pensamento, me apontarão como ingênuo e idealista.
Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua
vocaço ontológica para o ser mais, como falo de sua natureza constituindo-se social e historicamente não como um "a priori" da História.
A natureza que a ontologia cuida se gesta socialmente na História.
É uma natureza em processo de estar sendo com algumas conotaçes fundamentais sem as quais não teria sido possível reconhecer a própria presença humana no mundo
como algo original e singular.
Quer dizer, mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros.
Presença que, reconhecendo a outra
presença como um "não-eu" se reconhece como "si própria".
Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe.
E é no domínio da decisão, da avaliaço, da liberdade, da ruptura, da opço, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade.
A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma
virtude.
Na verdade, seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construço da própria presença. Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo.
Se sou puro produto da determinaço genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética.
Isto não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos.
Significa reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável.

Devo enfatizar também que este é um livro esperançoso, um livro otimista, mas não ingenuamente construído de otimismo falso e de esperança vã.
As pessoas, porém, inclusive de esquerda, para quem o futuro perdeu sua problematicidade - o futuro é um dado dado - dirão que ele é mais um devaneio de sonhador inveterado.

Não tenho raiva de quem assim pensa. Lamento apenas sua posiço: a de quem perdeu seu endereço na História.

A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar "quase natural". Frases como "a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?" ou "o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século" expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora.
Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada.
O de que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à
adaptaço do educando, à sua sobrevivência.
O livro com que volto aos leitores é um decisivo não a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente.

De uma coisa, qualquer texto necessita: que o leitor ou a leitora a ele se entregue de forma crítica, crescentemente curiosa.
É isto o que este texto espera de você, que acabou de ler estas "Primeiras Palavras".

Palavras do Grande Mestre Paulo Freire